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Que Brazil é esse? — parte 1

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“O Brasil não é um país sério”
Atribuída a Charles de Gaulle,
ex-presidente da França.

Entre fevereiro e março de 1963, durante um incidente diplomático envolvendo o Brasil e a França relativo à pesca de lagostas [1], houve um pequeno estremecimento nas relações entre os dois países e popularizou-se a versão de que Charles de Gaulle, presidente da França na época, teria dito que o Brasil não era um país sério [2].
A frase teve imensa repercussão e ficou famosa no Brasil inteiro, causando todo o tipo de reação, quase sempre sem levar em conta o contexto em que a frase teria sido dita. Muitos criticaram o presidente francês e alguns passaram a censurar todos os franceses, a tentar contradizê-los e a questioná-los sobre o que pensavam do Brasil. Havia, porém, um reconhecimento geral por parte da maioria da população brasileira de certos absurdos que ocorriam no país em relação ao seu ambiente político, aos casos de corrupção, aos problemas na formação educacional, ao direcionamento dos gastos públicos e à atuação nas relações exteriores, que revelavam factualmente a falta de seriedade brasileira.
Em 1979, o diplomata brasileiro Carlos Alves de Souza publicou um livro em que se assumia como autor da frase. Ele era, na época do incidente que ficou conhecido como “Guerra da Lagosta”, embaixador do Brasil na França, cargo que ocupou entre 1956 e 1964. Carlos Alves de Souza teria dito que o Brasil não era um país sério em uma conversa informal com o jornalista brasileiro Luís Edgar de Andrade, correspondente na França do Jornal do Brasil [3]. Conforme o embaixador brasileiro informa em seu livro “Um embaixador em tempos de crise”:

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“É evidente que, sendo hóspede do General De Gaulle, homem difícil, porém muito bem educado, ele, pela sua formação e temperamento, não pronunciaria frase tão francamente inamistosa em relação ao país do Chefe da Missão que ele mandara chamar. Eu pronunciei essa frase numa conversa informal com uma pessoa das minhas relações. A história está cheia desses equívocos.” [4]

Entretanto, mesmo com essa explicação, a frase continuou a ser repetida toda vez que era justificada por alguma situação que ocorria no Brasil. O autor e o contexto da frase deixaram de ter tanta importância e os brasileiros simplesmente passaram a usar a frase por si próprios, para se autorretratarem. Por um lado, a citação acabou reforçando o “complexo de vira-latas” que, segundo o escritor brasileiro Nelson Rodrigues, teria surgido após a derrota para o Uruguai na Copa do Mundo de Futebol de 1950 [5]. Por outro lado, como declarou o político brasileiro Jarbas Passarinho, no artigo “A força da versão”, publicado em 2001, essa acabou se tornando “a ofensa de que nos orgulhamos” [6].
Tal orgulho não se deve somente à ambiguidade da frase, que pode destacar tanto o descompromisso quanto a alegria do brasileiro dependendo do intérprete; o mais grave, porém, é que muitos brasileiros se orgulham da frase, julgando ter encontrado uma definição que finalmente explicou o Brasil, sendo utilizada por eles para exaltar o país do “descaramento” ou para censurar o país.
Houve, no entanto, algumas tentativas de responder à citação, como a do político brasileiro Rafael de Almeida Magalhães que declarou, em 1964, quando era vice-governador do antigo Estado da Guanabara (Rio de Janeiro), que o governo do presidente brasileiro Castello Branco (1964-1967) seria o “da transformação do Brasil em País sério” [7]. Também vale destacar a resposta do professor e ex-deputado brasileiro Solón Borges dos Reis, que, em um artigo de 1983, afirmava: “No fundo, porém, o Brasil é um país tão sério quanto todos os de­mais. Embora nem sempre nos de­votemos a ele com a responsabili­dade que merece e de que tanto precisa.” [8]
A principal resposta, no entanto, veio de outro presidente francês, Jacques Chirac, que, em 1997, durante uma conferência de imprensa em São Paulo, foi perguntado por uma jornalista brasileira se considerava o Brasil um país sério. Chirac declarou:

“(…) eu faço questão de asseverar que o general de Gaulle jamais disse isso e eu vo-lo digo oficialmente. Foi uma declaração que veio da Embaixada do Brasil em Paris. O general de Gaulle jamais disse isso por bons motivos. Primeiro porque o general de Gaulle tinha grande amor pela América Latina. Foi aqui recebido triunfalmente e era, além disso, um homem extremamente educado e cortês. É impensável que ele tenha dito uma coisa como essa. É uma invenção pura e simplesmente, cuja origem nós pudemos perfeitamente determinar, foi uma besteira.
Para mim, eu creio que o Brasil é um país extraordinariamente sério. Mas o sério pode ser entediante. O Brasil possui essa particularidade. É um país sério, que gere seus assuntos com seriedade, mas, para tanto, ele não perde nem seu entusiasmo, nem o seu charme e essa é provavelmente uma de suas grandes forças.” [9]

No final das contas, a citação acaba representando muito mais uma autocrítica brasileira do que uma visão dos estrangeiros sobre o país. A rigor, a frase não está de acordo com a ideia original deste livro, já que se trata de uma reflexão originalmente brasileira atribuída a uma figura estrangeira dotada de autoridade e de discernimento. Todo o crédito da afirmativa vem justamente do fato de que se imagina que ela foi dita por uma figura estrangeira (ver seção sobre a frase de Albert Camus). Em geral, os estrangeiros, sobretudo as figuras de relevância política, reconhecem a seriedade do Brasil em diversos aspectos; no entanto, a difusão da frase comprova que existe uma crença por parte de nós, brasileiros, de que a nossa própria seriedade e identidade dependem da frase de um forasteiro.

Notas:

[1] Um bom resumo da questão está no ensaio de Antônio Carlos Lessa presente no livro Relações Internacionais: Visões do Brasil e da América Latina, pgs. 187-222 (disponível no site: http://books.google.com.br/books?id=qq_szDHqIHMC&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=onepage&q&f=false).

[2] A confirmação de que a frase foi dita por Charles de Gaulle não pôde ser encontrada nas edições da época do Jornal do Brasil ou do Diário de Notícias, jornais em que, segundo relato dos comentaristas da “Guerra da Lagosta”, a autoria teria sido atribuída. Ao longo do ano de 1964, a citação já era bastante difundida, tendo sido mencionada algumas vezes no Jornal do Brasil, na voz de políticos brasileiros. A primeira vez que a frase apareceu diretamente foi em uma fala de Roberto Campos, na época Ministro do Planejamento e Coordenação Econômica, publicada no Jornal do Brasil de 16/09/1964 (pg. 11). Na edição é dito que Roberto Campos afirmou “ser o Brasil um país sério, que se transforma em ‘um bom risco’ e que espera que a afirmação que se empresta ao General de Gaulle – ‘Le Brésil ce n’est pas encore un pays sérieux’ [O Brasil não é ainda um país sério], – nunca foi pronunciada nem pensada pelo estadista francês.”

[3] Luís Edgar de Andrade, em conversa telefônica com o autor deste livro, confirmou que a frase nunca foi publicada no Jornal do Brasil e acredita ser possível que o próprio diplomata Carlos Alves de Souza tenha sido o divulgador da frase.

[4] Pg. 317 (F. Alves Editora, RJ, 1979). Carlos Alves de Souza termina a narrativa reforçando a sua opinião de que o Brasil não é sério e a última frase do livro (pg. 361) é exatamente a citação que fora atribuída a Charles de Gaulle, repetida em francês.

[5] O termo vem de uma crônica de 1958 que classificava o “complexo” como “a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol.” Do livro À Sombra das Chuteiras Imortais, de Nelson Rodrigues, pgs. 51-52 (Companhia das Letras, SP, 1993).

[6] Em artigo ao jornal brasileiro O Estado de São Paulo em 19/06/2001, pg. a2. Jarbas Passarinho ainda escreveu uma segunda parte para o artigo, que foi publicada pelo jornal brasileiro Folha de São Paulo em 28/09/2002, no Caderno Especial de Eleições, pg. 2.

[7] Citado no Jornal do Brasil de 28/04/1964, pg. 4.

[8] Em artigo ao jornal brasileiro O Estado de São Paulo em 26/06/1983, pg. 2.

[9] Durante uma conferência em São Paulo em 13/03/1997. Citado em: http://www.jacqueschirac-asso.fr/archives-elysee.fr/elysee/elysee.fr/francais/interventions/conferences_et_points_de_presse/1997/mars/conference_de_presse_du_president_de_la_republique_a_saeo_paulo.2799.html [tradução do autor deste livro].

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