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Quem foi José Peixoto Ypiranga dos Guaranys, o primeiro indígena brasileiro formado em Direito no país

Trajetória profissional e pessoal do advogado é tema de artigo dos historiadores Luiz Guilherme Moreira e Marcelo Sant’anna.

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Século XIX, ano de 1850, auge do Império. Um formando da cadeira de Direito da Faculdade de São Paulo, entraria para a História não apenas por obter o diploma, mas também por conseguir significativo destaque dentro da profissão. Algo impensável para a época. Além disso, nosso personagem foi um dos primeiros brasileiros a se tornar Bacharel em Direito no Brasil, uma vez que a Universidade – a primeira do país- tinha apenas alguns anos de existência. Portanto, ele foi aluno das primeiras turmas da instituição e também foi colega de classe do escritor da geração Romântica, José de Alencar. Segundo os historiadores, a vida de José Dias Peixoto ou José Peixoto Ypiranga dos Guaranys, como se apresentava, foi cheia de contradições, peculiaridades e êxitos.

A dupla de pesquisadores, formada por Guilherme Moreira e Marcelo Sant’anna. O primeiro é doutor em História (UFF) e mestre em História Social (UFRJ), professor das redes municipais de Cabo Frio e Armação de Búzios, autor de diversos livros sobre a historiografia indígena como a obra “Os índios na História da Aldeia de São Pedro de Cabo Frio – séculos XVII-XIX”, em coautoria com Janderson Bax Carneiro, entre outras publicações, Guilherme também é membro da Academia Cabo-friense de Letras e membro correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de Vassouras. Marcelo é formado em Geografia, mestre em História, ambos pela UERJ. Pesquisa e escreve sobre os povos indígenas fluminenses, sendo autor dos livros: “O índio virou pó de café” e do Vocabulário da língua Puri.

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Os autores, ao estudarem a história e protagonismo indígena na Região dos Lagos, em especial, em Cabo Frio, se depararam com o nome de José Peixoto Ypiranga. E logo se deram conta que estariam diante do personagem mais importante da pesquisa.

– A gente tem estudado o protagonismo indígena na região, sobretudo, em Cabo Frio. Um dos protagonistas, senão o mais importante é o José Ypiranga. Até por conta da trajetória peculiar que ele tem. Por esse destaque, que, de certa maneira, é negligenciado pela historiografia mais tradicional, mas que também nos permite mostrar que era possível um indígena chegar a elite da região e se destacar em outros cenários” – relata Luiz Guilherme.

A convite de Marcelo, um dos autores do artigo, Luiz Guilherme, que mora em Cabo Frio, ficou responsável pela complementação da lacuna sobre a documentação de José Peixoto e de seu pai, figura também muito peculiar e relevante para a construção da vida de José Ypiranga. A região tem um arquivo histórico na câmara municipal de Cabo Frio muito importante e interessante sobre a família Ypiranga.

A parceria da dupla já é antiga, ambos pesquisam a história indígena há mais de 10 anos. “Em 2010, por exemplo, antes de conhecer o Marcelo, a gente lançou um livrinho com um outro colega, professor de História também, que revisitava um pouquinho a História do aldeamento de São Pedro da Aldeia e de Cabo Frio. Acabei conhecendo o Marcelo, a gente se aproximou, viramos amigos, fizemos outras parceria e, de lá pra cá, a gente tem feito alguns estudos sobre a presença indígena, fizemos algumas entrevistas e uma coisa que nos chamou a atenção foram as famílias tradicionais, no sentido de serem famílias de até cinco gerações na região”, me disse Guilherme.

– A gente conseguiu algumas entrevistas que mostra um pouco desse aldeamento indígena porque o aldeamento na verdade, foi extinto há pouco tempo atrás, 150 anos atrás, 1876, não é um tempo muito longe. Então, avô e bisavô que não são antepassados muito distantes, conviveram com essas pessoas e como essa história se perdeu. Por conta de uma série de questões, entre elas, a questão do preconceito, da questão do processo civilizatório branco, nosso processo de embranquecimento e apagamento – explicou Marcelo.

Pergunto para os autores quais foram as maiores dificuldades enfrentadas durante o processo da pesquisa. A resposta parece óbvia. “A nossa grande dificuldade, sem dúvida, é a falta de incentivo. Porque na verdade, eu tenho doutorado em História, Marcelo tem mestrado, tem uma pesquisa sólida em historiografia indígena, mas não é nosso ganha-pão. Paralelo a isso, a gente tem que dar aulas, fazer trabalho de professor de ensino básico. E o Marcelo também, embora aposentado hoje, tem outros trabalhos, faz algumas pesquisas”.

A dupla já até submeteu o projeto de pesquisa a um edital da secretaria estadual de cultura e economia criativa, um edital agora da lei Aldir Blanc. Ganharam, mas estão encontrando alguns problemas. “A própria secretaria está revendo o processo. A gente não sabe como é que vai fazer ainda. Da para soltar uma nova seleção, uma nova nota. Estamos acreditando que a gente vá receber um incentivo para desenvolver a pesquisa e realizar viagens. Marcelo foi algumas vezes para São Paulo para colher mais informações justamente sobre a questão da formação do José Ypiranga totalmente fora da curva para o século XIX”.

O aumento do número de indígenas no meio acadêmico é resultado das políticas de cotas implementadas a partir de 2012. A inserção dessa população nesse ambiente culmina na pluralidade que as instituições de ensino devem ter. Pergunto para Marcelo como ele vê e pensa a questão da diversidade nas universidades. “A conquista de direitos se reflete também na universidade. Temos que reconhecer nossa identidade e nos orgulhamos dela. Esse avanço é fundamental.”

José Ypiranga começa a repensar o papel dos indígenas no Brasil, na cultura, na história e passa a colocar isso em prática na vida dele na Região dos Lagos. Essa virada de chave acontece justamente quando o Brasil começa a se formar, a criar uma ideia de nação e, consequentemente, a construir sua identidade nacional – ainda que com muitas falhas – Essa mudança também vai afetar diretamente a produção literária do José de Alencar, e de outros autores românticos.

“Lá na faculdade de Direito, ele vai participar de academias literárias, junto com José de Alencar, com a turma dele de um modo geral, e vai começar a discutir algumas questões que vão aparecer mais na frente na obra do José de Alencar e dos romantistas. Como a ideia de que os indígenas devem ser submissos à ordem portuguesa católica. Parece tudo muito pacífico na obra do José de Alencar quando na verdade, no cotidiano, não vai ser.”

“Se você pegar por exemplo, a trajetória do pai dele, que era o capital do aldeamento de São Pedro, ou seja, era o cara que organizava. Você vai ver aqui na documentação que tem um monte de indígena reclamando sobre o papel dele, ele era senhor de escravo, com muitas contradições. Ele era proprietário de terras, essas terras, de modo geral, são subtraídas do próprio aldeamento que foi extinto,  e ai essas terras passam para a mão dos brancos”.

O caso da família Ypiranga se torna bem peculiar, porque eles souberam aproveitar os melindres do sistema para se imporem e para buscar caminhos que os mantivessem na elite.

“A gente descreve no artigo por exemplo, que a esposa dele falava francês, tocava piano, recitava poemas em francês nas reuniões, nos saraus na região. O pai dele chegou a presidir durante algum tempo a câmara de Cabo Frio, então mostra que isso era possível e que passava pelo processo de embranquecimento”.

O momento histórico em que o José Ypiranga estava inserido contribuiu para que sua trajetória profissional tivesse destaque como nos conta o autor. “Ele vai fazer parte dos famosos bacharéis em Direito que, na verdade, não apenas atuavam no campo do Direito, então o José Peixoto vai voltar para a região de Cabo Frio, de Macaé, vai começar atuando como advogado e tendo uma participação importante num evento famoso no Império, inclusive na história do Brasil. A Fera de Macabu, um dos primeiros casos relevantes em relação a pena de morte. Esse caso alcança grande notoriedade e depois, por conta desse título de bacharel, ele vai se inserindo em vários setores da máquina administrativa do Império, chegando, por exemplo, a ser inspetor de escola, é o que hoje seria uma espécie de secretário da educação”.

“O que o José Ypiranga deixa de legado e inspiração é o fato dele ter sido protagonista da vida dele e ser reconhecido com a sua identidade indígena. A gente procura com o artigo, mostrar que apesar de existir um sistema opressor, que impõe uma série de coisas sobre as pessoas, existe uma brecha, existem opções dentro de um quadro de possibilidades para se pensar outras questões, e a história indígena também. Ela pode ser vista dentro uma nova perspectiva, que é o que nós chamamos de a nova história indígena. Algo que começou lá no século XIX com o José Ypiranga”.

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