Início Paulo Otávio Gravina Quando falar dói

Quando falar dói

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Imaginem se um médico diz no meio de uma cirurgia: “agora vamos parar as suturas e deixá-lo sangrar até a morte”, ou se um engenheiro diz durante uma construção: “vamos substituir os tijolos por areia”. Fica claro com esses exemplos que há sim limites para a liberdade de expressão.

Em termos de teoria, os limites foram apresentados pelo filósofo inglês John Austin, no livro How to do Things with Words [Quando Dizer é Fazer], publicado postumamente em 1962. Embora não fosse a referência principal de Austin, a principal teoria sobre as funções da linguagem até ali, que hoje se aprende na época da escola, era a do linguista russo Roman Jakobson formulando que há seis formas fundamentais de utilização da linguagem: referencial, informativa, cognitiva ou denotativa; emotiva ou expressiva; poética ou estética; conativa, imperativa ou apelativa; fática e metalinguística. John Austin, por meio de uma série de conferências no fim da década de 1950, acrescenta uma sétima função — a performática.

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Segundo ele, o que acontece quando o padre diz: “eu vos declaro marido e mulher”, ou quando o representante de um país diz: “está declarada a guerra”? É possível observar aí que a linguagem não está só dizendo algo — ela está fazendo algo. Obviamente, como o próprio autor afirma, um casamento é muito mais do que uma frase dita em uma igreja, assim como uma guerra é muito mais do que uma declaração de guerra, ainda assim existe nesses casos uma espécie de intersessão em que a linguagem ultrapassa os limites do dizer e chega aos limites do agir.

Em termos de literatura essa função performática é essencial para compreender a produção atual. Vemos, não só em manifestos literários, em textos performáticos e na poesia concreta, mas em dois títulos recentes e bem famosos: o conto “Cat Person” [refere-se a uma pessoa que gosta de gatos], de Kristen Roupenian, mais ligado ao progressismo, e o filme “Tropa de Elite”, do diretor José Padilha, mais ligado ao conservadorismo. O primeiro foi publicado na revista norte-americana New Yorker com o objetivo performático claro de denunciar a maneira que as mulheres são tratadas atualmente em relacionamentos afetivos em um mundo cada vez mais digital (e, ao mesmo tempo, líquido e manipulador). O segundo performaticamente “mostra” a situação da polícia e da criminalidade na cidade do Rio de Janeiro.

E em termos da linguagem como um todo? Acho que cabe analisar aqui três exemplos também recentes: o atentado à Charlie Hebdo, a fala do apresentador Bruno “Monark” Aiub e o tapa do ator e comediante Will Smith no comediante Chris Rock durante a cerimônia do Oscar.

O atentado foi uma reação atroz de acerto de contas contra uma piada envolvendo religião feita pela revista francesa Charlie Hebdo. O tema é bastante polêmico e está relacionado tanto à maneira que os imigrantes são tratados na Europa, quanto ao radicalismo islâmico como um todo. Conforme, após o atentado, a primeira e notável edição da revista afirmou: quem mais sofre com o radicalismo islâmico são os próprios islamitas. Longe de defender o ataque, mas nesse caso a fala e a caricatura da Charlie Hebdo ultrapassaram os limites da piada para certo público que tem pouquíssima voz na Europa e ocasionaram uma reação exagerada de justiçamento. O que o atentado revela é que a linguagem mais do que disse: ela doeu.

Já sobre a fala relativa ao nazismo do apresentador no podcast Flow, “eu acho que o nazista tinha que ter o partido nazista”, foi performática, chocando pessoas, ensejando repreensões por escrito de associações civis, cancelamento de contratos com o programa e podendo até constituir crime para além do mero exercício de liberdade de expressão. Juristas verificaram na fala apologia ao crime, prevista no Código Penal (decreto-lei 2.848/40, art. 287), além de apologia ao nazismo, que também é crime (§ 1º do art. 20 da lei 7.716/89, segundo a redação da lei 9.459/97). O caso ainda será julgado, mas parece bem claro, pelo menos em minha opinião. O apresentador, bêbado ou não, é (infelizmente) um formador de opinião e, guardadas as devidas proporções, se não dou um tiro em alguém, mas se convenço outra pessoa a fazê-lo, também não estou fazendo? A linguagem igualmente não ultrapassa nesse caso os limites do dizer?

Por fim, o infinitamente visualizado e debatido tapa durante o Oscar expôs as dores de um relacionamento extremamente midiático após uma piada de muito mau gosto. A alopecia da atriz, roteirista e produtora Jada Pinkett Smith obviamente está mexendo com a autoestima dela e isso claramente está afetando o relacionamento dela com o marido Will Smith, a ponto de ele ter tido uma reação exagerada diante dos olhos do mundo inteiro em um evento cercado pelo glamour e em um momento, conforme destacado pelo ator Denzel Washington, marcante da carreira de Will Smith. Para o público brasileiro é uma grande infelicidade, porque tanto Chris Rock quanto Will Smith são muito queridos por aqui e até hoje as séries de televisão “Todo mundo odeia o Chris” e “Um Maluco no Pedaço” são exibidas e muito assistidas no Brasil. Embora ele a tenha percebido como uma talvez improvisada “piada de G. I. Jane”, a fala de Chris Rock mais do que falou, ela causou extremo mal estar e expôs — e o tapa mais ainda — a condição física de alguém que não queria ter sido exposta e que deve ser a pessoa que mais está sofrendo até agora com toda a situação.

Observação: a imagem destacada foi retirada do Instagram de Jada Pinkett Smith. Todos os direitos reservados.

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