Início Colunas Garantia de investimentos x soberania – Argentina e Abutres – uma posição...

Garantia de investimentos x soberania – Argentina e Abutres – uma posição crítica sobre a grave questão internacional

746
0

Há um grande questionamento nesta discussão que envolve o direito de investidores em títulos da dívida de um país receberem seus dividendos, mediante os riscos da operação, e o direito de um país endividado escolher pagar ou não sua dívida, mediante os riscos desta atitude. Veja uma decisão da Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre caso assemelhado, mas não idêntico:

STJ – RECURSO ORDINARIO RO 6 RJ 1997/0088768-5 (STJ)

- PUBLICIDADE -
Data de publicação: 10/05/1999
Ementa: DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO – IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO DO ESTADOESTRANGEIRO – EVOLUÇÃO DA IMUNIDADE ABSOLUTA PARA A IMUNIDADE RELATIVA – ATOS DE GESTÃO – AQUISIÇÃO E UTILIZAÇÃO DE IMÓVEL – IMPOSTOS E TAXAS COBRADAS EM DECORRÊNCIA DE SERVIÇOS PRESTADOS PELO ESTADO ACREDITANTE. Agindo o agente diplomático como órgão representante do Estado Estrangeiro, a responsabilidade é deste e não do diplomata. A imunidade absoluta de jurisdição do Estado Estrangeiro só foi admitida até o século passado. Modernamente se tem reconhecido a imunidade ao Estado Estrangeiro nos atos de império, submetendo-se à jurisdição estrangeira quando pratica atos de gestão. O Estado pratica ato “jure gestiones” quando adquire bens imóveis ou móveis. O Egrégio Supremo Tribunal Federal, mudando de entendimento, passou a sustentar a imunidade relativa. Também o Colendo Superior Tribunal de Justiça afasta a imunidade absoluta, adotando a imunidade relativa do EstadoEstrangeiro. Não se pode alegar imunidade absoluta de soberania para não pagar impostos e taxas cobrados em decorrência de serviços específicos prestados ao Estado Estrangeiro. Recurso provido.

Encontrado em: SOBRE A IMUNIDADE JURISDICIONAL DOS ESTADOS, RDP Nº 22, P. 10/21.. HAROLDO VALADÃODIREITO INTERNACIONAL…”

Ou seja, a imunidade absoluta de jurisdição do Estado Estrangeiro está afastada quando o ato do Estado for uma ato de gestão e não um ato de exercício de soberania. Atos de gestão são contratações em geral, contratos de natureza civil e trabalhista, por exemplo. Assim, o empréstimo efetuado pela Argentina, através da tomada de valores por venda de títulos da dívida da Argentina é uma ato de gestão ou, essencial que é para a garantia da normalidade das finanças públicas, seria um ato de império?

Aparentemente é ato de gestão. Mas assim como administração de armas, a dívida pública tem repercussão grave e direta sobre o modo de vida de um povo, sobre a normalidade da vida de um país, sobre os rumos inclusive da política interna e externa… assim, poderiam sustentar que administração de dívida pública e o ato de pagar ou não um credor estrangeiro poderia ser considerado um ato de soberania.

Nessas horas é importante te em mente um aforisma de San Thiago Dantas (ou era de Clóvis Beviláqua?) que dizia o seguinte: “ao aplicar o direito, primeiramente vejo o que é justo, depois procuro o respaldo da lei”. Outro que aprendi era “para aplicar bem o direito, simplifique”. Complicar é o melhor meio para confundir e, na confusão, apresentar qualquer argumento para sustentar qualquer coisa.. afinal, você desnorteou o interlocutor que agora fica carente de qualquer norte que você lhe dê. O sofisma é isso, no fundo. Você desestrutura a compreensão sobre algo e em seguida apresenta uma lógica sobre novas premissas apresentadas que fazem sua conclusão sem fundamento principiológico forte ter a aparência de que é sustentável e válido.

Assim, observem, a decisão do Juiz americano é gravíssima. Um país está sendo colocado de joelhos por conta de contratos assinados (títulos da dívida argentina). Isso é razoável? O argumento é que se tomou emprestado tem que pagar. Isso é lógico e simples. Entretanto, e onde fica o risco do negócio de investimento em dívida soberana? Acabou? Os investidores cobraram juros pelo risco de pagamento. Risco pressupõe a possibilidade de perda. Ou não?

Por outro lado, a execução e observação integral dos direitos remuneratórios dos fundos abutres, que são meramente fundos de investimento, resulta na inviabilidade orçamentária de um país, ou uma grande dificuldade para a manutenção da vida interna desse país, como pagamento de funcionários, manutenção de serviços públicos de saúde, transportes, educação.. isso é razoável? Seria razoável, por exemplo, acabar com tudo isso e vender todo o patrimônio do Estado? Passar todo o serviço público para a administração e execução da área privada através de concessões? Todo esse esforço, violando opções internas sobre como deva ser o Estado argentino (com educação pública e gratuita, com saúde pública, com previdência social.. etc.. para milhões de argentinos), somente para garantir o retorno do investimento em dívida pública para um punhado de investidores?

O que eu vejo é que, mesmo que tais documentos (títulos da dívida argentina) admitam a renúncia da imunidade de jurisdição, e mesmo que tenham eleito o Fórum da Justiça Americana para decidir sobre questões em torno das normas que regem os contratos em questão (títulos da dívida argentina), o potencial destruidor destes títulos, no caso concreto, sobre as finanças públicas deve garantir a imunidade de um país em relação a tais cláusulas.

Moratória, como ocorreu com o Brasil em 1989, como ocorreu com México e Rússia nos anos 90, e agora como ocorre com a Argentina é ato de império que se sobrepõe à inicial aparência de ato de gestão por tomada de empréstimo de valores da sociedade e de estrangeiros. Há consequências da moratória? Há consequências de se querer fazer acordo que altere valores e formas de pagamento da dívida soberana? Há. E são negativas.

O país que não honra sua dívida, vê o mercado aumentar juros para futuras tomadas de empréstimo. Isso é grande pena/punição, pois prejudica o acesso ao mercado de capitais e, no caso da Argentina, ela estava até mesmo alijada do mercado internacional. Caberá ao povo eleger outras pessoas que dêem outro caminho à política de governo; ou chancelar, em tal momento excepcional de sua história, a moratória e conviver com as dificuldades que este ato cria ao país. Mas a decisão deve ser política do povo e do governo desse país, de forma soberana, pois mexe com a vida que decidiram viver.

Já houve época em que a dívida de um pequeno país da América do Sul com os EUA, por não ter sido paga em dia, gerou a invasão do País e a tomada de valores nos cofres públicos daquele país, pelos militares americanos, no início do século XX, segundo me contou um antigo Comandante de Regimento de Elite no Rio de Janeiro. Hoje, não admitimos (a comunidade internacional) mais que a cobrança de dívidas soberanas ocorram via militar. Mas também não devemos permitir que essa cobrança se dê de forma imediata através de juízes, ainda mais estrangeiros.

Um juiz não pode ter o poder de condenar um país à bancarrota e de inclusive sequestrar bens públicos desse país, como foi feito pelo Juiz americano (* ver p.s. 2 de 12/08/2014). O dinheiro público é de todos os habitantes daquele país, representados, mal ou bem, pelo seu governo. Esse argumento não serve para ditaduras, a princípio, mas países democráticos devem ter gerência absoluta sobre o destino do dinheiro público, segundo seus interesses, ainda que em prejuízo de alguns contratos e de alguns investidores que assumiram riscos e por estes riscos taxaram e receberam, ainda que por um tempo, altos juros.

A questão é gravíssima pois acaba com a possibilidade de um país se organizar internamente, enquanto deixa para eventualmente (e sempre ocorreu) quitar as dívidas a posteriori, quando sua situação se normalizar. A decisão cria instabilidade para a gerência de países. Cria dilemas sobre os atos de investimentos, tomadas de empréstimos no mercado internacional, principalmente com Fórum de Solução de Litígios nos EUA, e inclusive gera uma aberração jurídica, pois o pressuposto da decisão judicial, como ato de Estado, é que ela possa ser cumprida. Como pode o Estado Americano cumprir atos contra o governo Argentino por ordem Judicial, no caso de tal ato atentar contra a soberania da Argentina.

Não estamos falando do pagamento de dívida trabalhista ou de imposto de propriedade territorial urbana (IPTU) de Consulado, mas de impedir o gerenciamento da dívida pública de um país e decretar fim de valores para este pagar médicos, professores, policiais…. No caso, a quantidade de dinheiro altera a qualidade do ato de Estado.  Quem é pego com 10 gramas de cocaína é usuário, com 100 gramas é traficante. Quem explode um coquetel molotov no carro da polícia não pode ser considerado, por si só, terrorista, mas quem explode um caminhão de explosivos e destrói um prédio do governo pode. Um juiz condenar o Estado estrangeiro a pagar dívida trabalhista, conta de luz de consulado ou IPTU pode.. mas condenar a priorizar o pagamento de uns investidores em títulos de dívida pública prejudicando todo um acordo já feito com 91% dos investidores que aceitaram ganhar menos, inviabilizando as finanças públicas do País? Isso é inadmissível.

Fica aqui nossa posição sobre essa complexa questão. O Juiz americano deveria, na hipótese, ter sustentado a imunidade de jurisdição do Estado Argentino, já que a grandiosidade dos reflexos do pedido dos investidores evidencia que o “calote” foi um ato de império, derivado da soberania argentina. Fico impressionado como os argentinos não recorrem para reverter isso no Tribunal Constitucional americano e ficaria mais ainda se o argumento não fosse admitido pela mais alta Corte dos EUA.

Do jeito que está, está declarada a prevalência de bancos sobre países, de contratos sobre a soberania, da garantia de investimentos sobre a garantia da continuidade da prestação de serviços públicos à população de um país. Parece piada. Mas não é.

p.s. de 12/08/2014 – texto revisado e ampliado.

p.s. 2 de 12/08/2014 – Juízes americanos já foram notícia outras vezes por decisões polêmicas e aberrantes. O último de que me lembro foi o de um juiz que manteve a decretação de morte civil de um cidadão que estava sumido mas reapareceu vários anos depois. Como se passaram anos, o juiz admitiu a prescrição do direito de pedir alteração da decretação de morte civil. A própria esposa não tinha interesse na reversão da decisão judicial, pois estava recebendo pensão por morte. E, fantástico como é esse país, assim ficou a situação. O primeiro morto-vivo oficial do mundo!! AUAHAUHAUHAUHAA Esses EUA são demais! Acessem a fonte da notícia em http://noticias.r7.com/esquisitices/voce-esta-morto-decreta-juiz-para-homem-vivo-10102013 e acostumem-se com as fantásticas decisões dos juízes norte-americanos.

p.s. de 22/08/2014 – texto revisto.

- PUBLICIDADE -

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui