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Aos endividados, com carinho

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Devedores, há esperança, e não é nas fileiras dos jogos de “Round 6”. Uma grande mudança no capitalismo a partir do início século XX foi: a afirmação dos devedores como portadores de direitos. Aprendi sobre isso em uma palestra do economista turco Dani Rodrik; tendo sido uma consequência direta da defesa que o chanceler argentino, em 1902, fez de uma Venezuela extremamente endividada (e a história se repete…), resultando no que foi chamado de Doutrina Drago. Segundo a descreveu o próprio Luis María Drago:

“[…] entre os princípios fundamentais do Direito Público Internacional que a humanidade consagrou, é um dos mais preciosos o que determina que todos os Estados, qualquer que seja a força que disponham, são entidades de direito, perfeitamente iguais entre si e reciprocamente fiáveis por ele às mesmas considerações de respeito […]. O reconhecimento da dívida, a liquidação de seu montante, podem e devem ser feitos pela nação, sem prejuízo de seus direitos primordiais como entidade soberana, porém a cobrança compulsiva e imediata em um momento dado, por meio da força, não traria outra coisa que a ruína das nações mais débeis e a absorção de seu Governo […] pelos fortes da terra […]. A cobrança militar dos empréstimos supõe a ocupação territorial para fazê-la efetiva e a ocupação territorial significa a supressão ou subordinação dos governos locais aos países a que se estende.”

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E:

“[…] a dívida pública não pode dar lugar à intervenção armada, menos ainda à ocupação material do solo das nações americanas pela potência europeia”.

Essa doutrina foi diretamente sustentada na II Conferência da Paz em Haia, a mesma que intitulou o brasileiro Rui Barbosa de “águia”. Ela também foi defendida pelo delegado norte-americano na Conferência, o general e embaixador Horace Porter, resultando, em 1907, na Convenção Drago-Porter, primeiro tratado proibindo o uso da força para cobrança de dívidas, estatuindo que:

“Os Poderes Contratantes concordam em não fazer recurso à força armada para a recuperação de dívidas contratuais reivindicadas do Governo de um país pelo Governo de outro país como sendo devida a seus nacionais.” (Art. 1º — minha tradução).

Na atualidade isso já é regra e observo mesmo uma inflexão do capitalismo nesse sentido: na realidade ter crédito é muito mais importante do que ter capital. Já não é mais tão significativo estar endividado, desde que se tenha condições de pagar. Os EUA, o maior país capitalista do mundo, são também o país mais endividado em termos absolutos e mesmo índices econômicos tradicionais, como a relação dívida/PIB [Produto Interno Bruto], vêm sendo substituídos por outros mais adequados, por exemplo a análise da evolução ao longo do tempo da relação dívida/PIB.

Portanto, que os devedores saibam que a legislação fornece muitos meios de proteção à população que contraiu dívidas. A regra neste momento, após a pandemia de covid-19 e com inflação acima do normal, é negociar, renegociar e renegociar. Dados recentes apontam que o percentual de endividamento entre as famílias brasileiras ultrapassou 75%, com mais de 35% de brasileiros adultos inadimplentes e negativados, sendo a maior parte das dívidas relacionada a gastos com cartão de crédito. No Brasil, o Código de Defesa do Consumidor (lei 8.078/90) veda cobranças abusivas, inclusive aumentos súbitos de juros não pactuados (art. 6º, V; art. 39, V e art. 51, IV) e estatui que cobranças devem ocorrer sem prejudicar o trabalho, o descanso ou o lazer do consumidor, ou seja, em horário comercial, e sem fazer uso de ameaças, coação ou constrangimento (arts. 42 e 71). Inclusive, no ano passado, a lei 14.181 fez diversas alterações no Código de Defesa do Consumidor com o objetivo de prevenir o superendividamento, entendido como a impossibilidade de o consumidor pagar suas dívidas sem comprometer seu mínimo existencial (§ 1º do art. 54-A). Entre as mudanças, a referida lei prevê: fomento à educação financeira (art. 4º, IX); fornecimento de todos os detalhes dos elementos que compõem o crédito no momento da oferta (art. 54-B); interdição de assédio ou pressão ao consumidor para contratar o fornecimento de produto, serviço ou crédito, principalmente se tratando de consumidores idosos, analfabetos, doentes ou vulneráveis em qualquer sentido (art. 54-C, IV) e realização de uma audiência conciliatória entre o credor e o devedor para repactuação da dívida (art. 104-A). Caso o banco ou o cobrador ultrapassem qualquer limite, há muitas formas de denunciá-lo: como a plataforma consumidor.gov.br, o Banco Central ou mesmo a polícia. Nos dois primeiros casos, a reclamação pode ser feita com facilidade pela internet.

Observação: a imagem destacada foi retirada do site da Serasa Experian. Todos os direitos reservados.

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4 COMENTÁRIOS

  1. Parabéns ao autor. Vemos aqui uma ponderação muito pertinente para os dias atuais. O artigo faz pensar, talvez, como podemos vislumbrar uma evolução do direito do devedor no capitalismo como a evolução de um direito que foi se expandindo de sujeito em sujeito. Afinal, o direito societário – que muitos dizem foi o berço normativo do capitalismo -, na virada do século XVIII pro XIX, começou dando privilégios e prerrogativas às Pessoas Jurídicas de Direito Privado (empresas, bancos, sociedades anônimas, etc.). Na virada do século XIX pro XX, vemos esses privilégios se estendendo às Pessoas Jurídicas de Direito Público (os Estados). Agora, nessa já adiantada virada do século XX pro XXI, por fim, vemos esses privilégios chegando às Pessoas Naturais (os indivíduos). Parabéns!

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