Mulholland Drive – Cidade dos Sonhos (2001) – Dir.: David Lynch
Por Alexandre Enrique Leitão
Hollywood, vizinhança de Los Angeles que, desde a década de 1920, tornou-se o coração da indústria cinematográfica norte-americana e ― no processo ― a Meca do cinema mundial, figurou, ela própria, em filmes dos mais variados gêneros. Tramas centradas em atores, diretores, roteiristas e produtores, históricos ou fictícios, foram apresentadasora no formato de dramas premiados, como O Artista (2011), de Michel Hazanavicus, e La La Land (2017), de Damien Chazelle, ora no de comédias como Era uma Vez em Hollywood (2019), de Quentin Tarantino e Cantando na Chuva (1952), de Gene Kelly e Stanley Donnen. Porém, apesar de muitos desses filmes centrarem suas narrativas nas dificuldades técnicas que envolvem o trabalho de produção cinematográfica (como a escalação de elenco, a logística das filmagens, a edição, etc), alguns decidem se aventurar pelo aspecto filosófico e inerentemente trágico de Hollywood. Em filmes desse tipo, Los Angeles é mostrada como uma cidade perigosa, marcada pela corrupção e pelo crime, e envolta por fenômenos como o abuso sexual e moral, sendo definida, em parte, pelo fato de se tornar o local onde os sonhos de milhões de aspirantes a artistas encontram o fracasso. Obras desse estilo costumam contrapor o cenário quase tropical da Califórnia, com suas palmeiras, praias e montanhas esverdeadas, a imagens de submundo e decadência, não raro envoltas pelo espectro da violência e do medo ― caso de obras como Barton Fink ― Delírios de Hollywood (1991) dos irmãos Cohen, e O Jogador (1992), de Robert Altman. Porém, dentre as obras deste estilo, a maior é, seguramente, Mulholland Drive ― Cidade dos Sonhos (2001), dirigida e escrita por David Lynch, que tenho como meu filme favorito.
Filme de suspense com teor surrealista e tons neo-noir, Cidade dos Sonhos narra a história de duas personagens, a aspirante à atriz Betty (interpretada por Naomi Watts) e uma misteriosa mulher com amnésia, interpretada pela atriz Laura Harring. Na trama, a personagem de Harring acaba se envolvendo em um brutal acidente de carro na estrada Mulholland Drive ― que perpassa o entorno rural de Los Angeles e dá título ao filme ― pouco depois de ficar na mira de dois criminosos. Após um carro bater contra o seu, evitando que a mesma fosse assassinada, a mulher desconhecida começa a caminhar sem rumo pelas ruas da cidade, afligida por uma completa amnésia. Vagando a esmo, a personagem encontra refúgio em um complexo de apartamentos de arquitetura antiquada, onde vem a desmaiar. No dia seguinte, ela é encontrada por Betty, recém-chegada do Canadá, que veio a Los Angeles, onde ficará hospedada no apartamento de sua tia, para tentar a carreira como atriz. Ao acordar e vislumbrar um pôster do filme noir Gilda (1949), dirigido por King Vidor e famoso por sua protagonista, uma misteriosa mulher interpretada por Rita Hayworth, a personagem com amnésia passa a adotar o nome da glamourosa atriz da Hollywood dos anos 1940. Betty decide então, tal qual os detetives particulares dos filmes policiais clássicos norte-americanos, ajudar “Rita”, sua mais nova amiga, a descobrir sua verdadeira identidade. Em meio à investigação, o filme apresenta ainda duas outras sub-tramas, focadas nas tentativas do diretor iniciante, Adam Kesher (interpretado por Justin Theroux), em evitar que o roteiro de seu filme seja controlado por estranhos produtores ― que parecem possuir algum tipo de ligação com o crime organizado ― e nas ações de um assassino de aluguel chamado apenas de Joe (interpretado por Mark Pellegrino), que percorre a cidade em busca de uma enigmática agenda de couro.
Porém, há que se ter cuidado ao falar em excesso das tramas de Cidade dos Sonhos. Envolta em um ar de constante tensão, o qual é mantido graças ao uso de frequências desconcertantes como som de fundo em sua trilha sonora, e pelos movimentos fluidos de câmera e iluminação reduzida em determinadas cenas ― que visam gerar desconforto ― a obra de David Lynch é também caracterizada por sequências de caráter surrealista, as quais se remetem aos filmes experimentais de artistas como Salvador Dalí e Luís Buñuel. Em determinado momento, por exemplo, a história é interrompida para que acompanhemos o encontro de dois homens sem nome em uma lanchonete. Durante um diálogo crescentemente assustador, um deles relata seu pesadelo, que envolve encontrar uma figura monstruosa, a qual ele afirma que estaria escondida na área dos fundos da própria lanchonete. Em outro ponto da trama, o diretor iniciante é orientado a visitar, no meio da noite,um suposto “cowboy” ― apresentado como uma figura poderosa em Hollywood ― em um rancho desolado, a fim de encontrar uma solução para o impasse acerca de seu filme. E em uma das mais memoráveis cenas da trama, Betty e “Rita” vão subitamente a um clube de música com o sugestivo nome de “Clube Silêncio”, localizado em um teatro abandonado, onde uma solitária senhora de cabelos azuis, assiste à sinistra e melancólica apresentação da canção “Crying” de Roy Orbinson, em espanhol, entoada por uma cantora que, em prantos, repete o verso: “Estoy llorando por tu amor”. Cidade dos Sonhos funciona assim como um quebra-cabeça, em que o espectador deve prestar atenção a cada detalhe e peça da narrativa, enquanto trafega por um universo escuro, no qual a qualquer momento suas protagonistas podem se encontrar em perigo. Tal é representado por uma sequência na qual a personagem Louise, uma das vizinhas de Betty, vestindo um véu negro e aparentando comportamento desequilibrado, bate à porta de seu apartamento e afirma, em tom ameaçador: “Alguém está em apuros. Algo ruim vai acontecer”. Louise é interpretada pela atriz Lee Grant, cuja carreira na década de 1950 foi marcada pelo filme noir “Chaga de Fogo” (1951), dirigido por William Wyler.
Porém, além de ser um impactante mistério, que continua a ser objeto de debate vinte anos após seu lançamento, Cidade dos Sonhos é um poderoso estudo psicológico e filosófico acerca do fascínio que Hollywood exerce sobre o público, e como este pode esconder o perigo que reside não apenas no meio cinematográfico mas também dentro daqueles indivíduos que se dispõem a fazer qualquer coisa para realizar seus desejos. Nesse sentido, em Mulholland Drive, o contraste entre as imagens de uma Califórnia ensolarada, com mansões de estilo espanhol dos anos 1920 (uma marca da dita Era de Ouro de Hollywood), e cenas de apartamentos e ruas sujas e decadentes, é utilizado por Lynch para realçar como o aspecto artificial de Los Angeles e da indústria cinematográfica pode ser utilizado para esconder sérios problemas da sociedade norte-americana. Este não é o primeiro filme em que Lynch se vale do uso de maniqueísmos visuais para indicar a oposição entre atmosferas paradisíacas e o submundo do crime. Tal já fora feito pelo cineasta e artista plástico em outras de suas obras, como Veludo Azul (1988) e Coração Selvagem (1990), além de se ver presente em sua clássica série televisiva, escrita em parceria com Mark Frost, Twin Peaks (1990-1991 e 2017). Em muitas de suas obras, Lynch parece se valer de referências visuais e temáticas aos anos 1950 ― quando os EUA se imaginavam encontrar no auge de seu poder e estabilidade ― para abarcar a discrepância entre a imagem que os personagens possuem do mundo ao seu redor e aquilo em que ele de fato consistiria. Daí ser comum em sua filmografia encontrar-se músicas pop dos anos 1950, como aquelas tocadas por Roy Orbinson e Linda Scott ― e que figuram na trilha de Cidade dos Sonhos ― bem como carros, vestimentas, objetos de cena e referências cinematográficas, caso das constantes menções na trama a filmes noir dos anos 1940 e 1950, caso de Gilda, e O Crepúsculo dos Ídolos (1950), que narra a história do declínio e da espiral de loucura de uma decadente estrela de Hollywood. Os filmes noir tornaram-se icônicos, na história do cinema, pela forma crua como abordavam narrativas policiais, bem como pelo uso que faziam de fortes contrastes entre luz e sombra ― traços que estão presentes em Cidade dos Sonhos. Estes fatores fazem com que Mulholland Drive pareça existir num tempo fora do presente, em um universo no qual Hollywood continua a estar na sua Era de Ouro, e onde seu brilho continua a esconder a mais abjeta violência.
A título de curiosidade, vale dizer que David Lynch primeiro gravou Cidade dos Sonhos como o episódio piloto de uma série de TV para a rede americana ABC. De acordo com o próprio Lynch, depois de uma reunião malsucedida com um executivo, que lhe sinalizou não haver interesse do canal em prosseguir com o projeto, o cineasta ― indicado então duas vezes ao Oscar de melhor diretor ― teve que engavetar toda a produção, mesmo com o episódio já se encontrando filmado e editado. Após a produtora francesa Studio Canal lhe informar que tinha interesse em comprar Mulholland Drive e transformá-lo em um filme, Lynch ― que pensara o projeto como uma série de TV ― teve de buscar uma solução para encerrar o mistério de sua obra de uma forma que fosse possível transformá-la em uma película de pouco mais de duas horas de duração. Para isso o diretor resolveu buscar em uma sessão de meditação a resposta que lhe permitiria concluir a trama. Lynch é, há décadas, praticante de meditação transcendental. A solução que veio até ele lhe forneceu a chave para remodelar o roteiro. Enquanto filme, Cidade dos Sonhos, que fora recusada como piloto de uma série de TV, foi indicado à Palma de Ouro do Festival de Cannes, em 2001, que conferiu a Lynch o prêmio de melhor diretor. Nunca saberemos, ao menos nesta realidade, qual teria sido o impacto e sucesso de Mulholland Drive enquanto série televisiva, porém, o mesmo é, atualmente, um dos maiores clássicos do cinema moderno, inesquecível em cada uma de suas cenas e na assustadora palavra final que ― ecoando as falas derradeiras do Príncipe Hamlet na peça de Shakespeare ― encerra a história: “Silencio”.
Link pra o episódio piloto original de Mulholland Drive― Cidade dos Sonhos ― filmado em 1999: https://www.youtube.com/watch?v=kcXt3ufaLgc&t=1s.
Alexandre Enrique Leitão é jornalista, historiador, pesquisador, educador e youtuber. Bacharel em História e Jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Alexandre Leitão também é mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ, além de atuar como professor de inglês, francês e espanhol. Na faculdade fez pesquisas sobre o cinema brasileiro, e hoje mantém o canal “O MacGuffin” no YouTube, dedicado a apresentar e debater filmes e gêneros cinematográficos de diversos países. Atualmente faz doutorado em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Link para o canal “O MacGuffin”: https://www.youtube.com/channel/UCshlf0Qa7zNVWXHsrFRROOw.