A ampliação do conceito da Seguridade Social no Brasil ocorreu com a promulgação da Constituição Cidadã de 1988. O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), por razão óbvia da dimensão do nosso país, é um dos maiores institutos públicos de seguro social em número de beneficiários. Muito citado em trabalhos acadêmicos mundo afora exatamente pela complexidade sistêmica e da logística. Por sua vez, “logística”, do grego “logos”, “lógica”, “logistikḗ“, significa a administração, contabilidade e organização que trata das informações, do planejamento e realização dos projetos desde a concepção até sua entrega. O exemplo, na maioria das vezes, rendeu ao Instituto muita elevação pelos seus pontos positivos sobre os negativos.
Bom, você deve estar pensando agora: “O articulista está louco!” … leia e entenda:
Não debateremos o idealizado, vamos nos ater tão somente nos argumentos comparativos do que o Instituto foi e o que é agora. Por outra óbvia razão, entendemos que a gravidade da atual situação é proposital.
O programa “Fantástico”, em 27/09/2020, da emissora “Rede Globo” exibiu reportagem sobre a precariedade do serviço prestado à população, intitulado “Dor, descaso e filas: mais de um milhão de brasileiros esperam por atendimento no INSS“, assistido em https://globoplay.globo.com/v/8892090/. Chamaremos à atenção grifando alguns trechos da reportagem anexada.
Primeiramente vamos recapitular um evento importante, o fator responsável pelo agravamento da referida situação iniciou-se pela derrubada (em 2016, abstraindo o juízo político, por favor) do governo eleito (em 2014), então, de forma disruptiva para reorganização dos objetivos, deu-se margem para o mesmo CONGRESSO NACIONAL à proposição da EMENDA CONSTITUCIONAL 95, emenda que limitou as despesas (gastos) governamentais. É preciso registrar sobre as iniciativas legais que alteram as regras tributárias e orçamentárias são de competência exclusiva do CONGRESSO NACIONAL. Assim, a EC/95 (como é conhecida) foi aprovada pelos parlamentares, assinada pelas mesas diretoras das duas casas, Câmara e Senado Federal e publicada no DOU no dia 16/12/2016, na Seção 1, Página 2.
Alguns pontos relevantes citados na matéria (esta, pode ser considerado com ressalvas): “IMPORTANTE RESSALTAR sobre a situação ocorrida tenha responsabilidade direta pela contribuição do editorial da emissora num passado recente”. Relacionaremos:
1 – Sobre o impedimento para a realização de novos concursos públicos, logo no início a apresentadora menciona “falta de servidores” e sobre a criação da “plataforma digital”, sugerida como uma evolução da modernidade. Na verdade completamente descompassada com a realidade dos beneficiários. Brasileiros tem um nível baixo na inclusão digital e é exatamente naquele público mais necessitado para atendimento no INSS. Ainda na introdução, reforça-se a ideia do “pagou, mas não levou” provocando o raciocínio que o sistema estaria insustentável (uma meia verdade) e não existiria uma solução viável deste sistema (uma mentira);
2 – A princípio, a reportagem induz o telespectador a pensar: “Talvez, o melhor mesmo seria a privatização do sistema”. A retórica da reportagem não explicita que o que falta é exatamente GOVERNO. A retaguarda do Estado nas possibilidades da gestão de uma crise, como a atual pandemia, lembramos, foi “minada” pelos limites estabelecidos na EC/95. Numa segunda análise, mais profunda da recente ideologia administrativa, essa deficiência (pelo descaso) parece agravada propositalmente vislumbrando objetivos capitalistas (outras ofensivas de precarização são observadas nas estratégias da privatização do Petróleo e Gás, da Água e Saneamento, dos Correios, na Embrapa, por exemplo). Prejuízos ao funcionalismo, à salubridade, às escalas, por programas de demissão, pelo fechamento de agências, pela falta de material, do suporte tecnológico e da segurança no trabalho;
3 – Para explicar a conexão, ideia da gestão, o mais importante na matéria são os depoimentos dos técnicos e dos especialistas entrevistados. Mostra a cronologia da deformação. Aos 4 minutos e 35 segundos, o defensor público, Pedro Dubois, marca a escalada dos problemas no final de 2018, período de transição entre governos. Denuncia a perspectiva. A matéria se torna mais honesta aos 6:50 quando explicada a razão da interrupção dos concursos, em 2015, para não ensejar maior “déficit” nas contas do governo, portanto, a opção pelo “déficit” do serviço resultou num problema sistêmico. Contudo, a redação da reportagem nunca cita a EC/95, estratégia legal baseada na ideologia de administração econômica qual a emissora ajudou a conformar o senso comum para sua aprovação como medida ortodoxa necessária para o saneamento fiscal;
4 – Aos 7:30, ainda na sua retórica, o repórter constrói uma ilustração comparativa e questiona: – “Qual empresa conseguiria manter a qualidade dos seus serviços trabalhando com menos 40% do seu pessoal?”, e continua relatando o fato da aposta do governo em implementar o acesso por canais digitais, relembremos, sem inclusão digital (vide pesquisa patrocinada pela FGV denominada “Mapa da Inclusão Digital” (de 2012, com pouca variação em 9 anos), disponível em http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/20738/Sumario-Executivo-Mapa-da-Inclusao-Digital.pdf?sequence=1&isAllowed=y), denota a falta de planejamento e sensibilidade, inclusive, a exemplo da prometida interiorização da “fibra ótica” e da banda larga das telecomunicações desde a privatização do sistema “Telebrás” (na longínqua década de 90) e NUNCA entregue pelos consórcios JUSTAMENTE PORQUE AS EMPRESAS PRIVADAS NÃO VEEM RETORNO (lucro) num hipotético investimento nas regiões de menor potencial de consumo, quiçá para cuidar da saúde, seguridade ou previdência do cidadão (talvez, sim, a previdência com muitas cláusulas condicionantes);
5 – Na sequência, é afirmado: – “O sistema do próprio INSS trava a todo momento”. Mesmo assim, como explicado a partir dos 9:25, numa tentativa de trazer à funcionalidade, o judiciário autorizou o governo “obrigar” (não há outro verbo) o beneficiário a realizar o trabalho na alimentação do sistema (tarefa do servidor) com a documentação exigida na abertura dos pedidos dos benefícios e, agora, é o segurado e paciente responsável pela administração do seu próprio processo, em seus computadores e “smartphones”. Se possuir, ou contratar o serviço de terceiros, sejamos claros;
6 – No obrigatório atendimento das agências (previsto em lei) recebe-se a orientação padrão (como é praxe na revolução dos protocolos das empresas capitalistas, no mundo automatizado, denominada 4.0) para buscar o autoatendimento nas plataformas digitais, instalações de APPs, ou seja, condenados ao “Vale da Estranheza” (conforme definido nos estudos sociológicos) por conversas quase esquizofrênicas com uma “inteligência artificial” burra. Recurso tecnológico que, claro, salva o tempo e o custo deles, no entanto, consome nosso tempo e paciência, como também destrói os empregos. Muitas vezes se comprovam protocolos improdutivos;
Então? Outra reflexão: – “O atraso maquiado de evolução?” Sem o retorno do Estado para a iniciativa básica, o que será do futuro do capitalismo num mundo tomado por autoatendimento, inteligência artificial (IA) e APPs, sem empregos, consequentemente sem consumidores, cheio de pacientes sem seguro social, nem a possibilidade no custeio do sistema privado?
Embora a reportagem do “FANTÁSTICO” tenha produzido, na mente de alguns, ambiguidade e conforme a ideologia um aspecto muito negativo para a instituição, os técnicos consultados demonstraram a causa do problema justamente pelo abandono da dinâmica objetivada no estatuto da criação do INSS. Grifamos o prejuízo administrativo pelos efeitos da Emenda Constitucional n.º 95 de 2016 como o dispositivo legal que “feriu de morte” a pretensão do Estado Social a partir da Constituição Cidadã de 1988.
Conclusão, reforçamos a ideia que em nenhum lugar do mundo se debate Estado Mínimo. Essa estratégia somente é explorada na imaginada (não verdadeira) deficiência intelectual (ignorância) do terceiro mundo e, obviamente, imposta pela estratégia da “doutrina do choque” comum em governos inicialmente “autocráticos”, aqueles travestidos numa aparente democracia, mascarando objetivos possivelmente totalitários e para servidão neocolonial. Os problemas catalisados com o fato “pandemia” evidenciaram as questões no liberalismo impossíveis de serem respondidas, mas expôs a importância do Estado necessário.
A pergunta e a resposta
Restauraremos e reforçaremos a ordem democrática para as dinâmicas do Estado Social como configuradas na nossa Constituição e nos anseios de um povo que se mostra extremamente necessitado? Sim, mas, somente no caminho da estrutura financiada pela transferência da riqueza gerada no país como HOJE está prevista, principalmente, da CF/88, art. 195, inciso I, alíneas “b” e “c”, pelo destaque do faturamento bruto das pessoas jurídicas (LC 70/1991, art 1º) e pela contribuição sobre o lucro líquido de todas as empresas e bancos (Lei 7.689/88, art. 1º), para a seguridade social. E é exatamente esse modelo que desejam encerrar.
O economista ortodoxo, aquele sempre com espaço na TV, toda a oportunidade dada no debate sobre assunto, afirma: “O Brasil tem aproximadamente 16% do PIB atrelado aos gastos obrigatórios”, traduzindo para a explícita relação objetivada, boa parte disso para a “Seguridade Social”. A última pergunta relevante: “Quem deve pagar esse custo não seria quem tem a maior capacidade em vista que esse investimento é essencial para a economia do país?”
Por fim, fiquemos atentos, o texto base da PEC EMERGENCIAL deseja acabar com a determinação constitucional sobre os gastos mínimos reservados para a SAÚDE e para a EDUCAÇÃO, sempre, sob justificativa pelo saneamento fiscal [nunca sobre os gastos pelo serviço financeiro da dívida pública], sim, pelo discurso da elevada carga tributária, concomitantemente, como imediatamente dito, há o desejo do encerramento da fonte de financiamento da “Seguridade Social” como despesa obrigatória, então, na reforma tributária transferindo a receita exclusiva através da chamada “simplificação tributária”, onde serão “aglutinados” os impostos federais: PIS e COFINS no IBS, e, provavelmente, a CSLL no CBS, por sua vez, a receita contabilizada para orçamento geral com a perspectiva na desoneração paulatina, retirando o retorno ao cidadão, contrariando a previsão constitucional (CF/88, art. 145, § 1.º) em prejuízo do “princípio da capacidade contributiva”, certamente, também retirando o ônus daquele com maior capacidade para a concentração de riqueza, consequentemente contribuição, derradeiramente o custeio pesar “nas costas” do cidadão, como sempre se revelou pretenso por este governo.
O propósito é o encerramento do Estado Social, fundado em 1988, então, a partir da sinalização desse interesse na revogação gradativa das medidas e programas implementados no sistema por décadas, e, a consequente PRIVATIZAÇÃO DO SUS impingindo o sistema de “voucher” na saúde, como sugerido pelo Ministro Paulo Guedes, também, implementação do seguro no contrato individual do trabalho (como era o antigo INPS) e a capitalização da previdência (por fundos privados).
■
NOTAS:
[1] Este artigo foi escrito em 27 de setembro de 2020, originalmente para o “Facebook”, e publicado na plataforma em 29 de setembro de 2020. No dia 07 de outubro de 2020, o jornal FOLHA DE SÃO PAULO publicou uma matéria intitulada “Equipe econômica estuda privatização para bancar obras e programa social“, acessado em https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/10/equipe-economica-estuda-privatizacao-para-bancar-obras-e-programa-social.shtml, qual, mais uma vez, denota a dinâmica do governo na tentativa de “um ponto sem retorno” do Estado Social fundado a partir da Constituição Federal de 1988 modificando as fontes de financiamento das políticas sociais do Estado brasileiro.
[2] Em 26 de outubro de 2020, o líder do governo Bolsonaro na Câmara dos Deputados, Ricardo Barros (PP-PR), afirmou que a Constituição de 1998 somente releva os direitos do cidadão, matéria intitulada “Líder do governo defende plebiscito para mudar Constituição no Brasil” pode ser lida em https://www.cnnbrasil.com.br/politica/2020/10/26/lider-do-governo-defende-plebiscito-nos-moldes-do-chile-no-brasil, e, na tese dele, nenhum dever. Continua o discurso sugerindo um plebiscito para uma nova Assembleia Nacional Constituinte repetindo o motivo uma vez justificado por Sarney que a Carta fez um país “ingovernável”. Diante do argumento, traduz-se a intenção da reforma exatamente como afirmado no presente texto em vista que “os direitos” reclamados obviamente referem-se às despesas obrigatórias da nossa República exatamente aquelas que garantem (na medida do possível) o bem estar social, então, a saúde, a assistência social e a previdência pública. Obviamente ele foi orientado que existem “CLÁUSULAS PÉTREAS” sobre os direitos e garantias individuais (CF/88, art. 60, § 4º, inciso IV, “(…) não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir (…) os direitos e garantias individuais“, quais somente inexistirão se reorganizadas numa nova ANC, como esclarecido na carta, nunca por emenda constitucional.
[3] Em 27 de outubro de 2020, o presidente Bolsonaro publica o decreto 10.530/2020 no D.O.U., no âmbito das parcerias de investimento privado sobre a política de fomento ao setor de atenção primária à saúde, segundo o decreto “a qualificação tem fins de elaboração de estudos de alternativas de parcerias com a iniciativa privada para a construção, a modernização e a operação de Unidades Básicas de Saúde (UBS) dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios”. A matéria, intitulada “Decreto libera estudos sobre a privatização de unidades de básicas de saúde“, pode ser lida em https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2020/10/27/decreto-libera-estudos-sobre-a-privatizacao-de-unidades-de-basicas-de-saude.ghtml. Fiquemos atentos!
[4] Em 07/12/2020, a mídia brasileira divulga a feitura de um “revogaço” (assim chamado por ela) a 100 portarias sobre saúde mental, editadas entre 1991 e 2014, que vão atingir diversos programas e serviços do Sistema Único de Saúde (SUS). A matéria intitulada “Ministério da Saúde põe em risco programas de saúde mental do SUS” pode ser lida em https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2020/12/07/interna_nacional,1218202/ministerio-da-saude-poe-em-risco-programas-de-saude-mental-do-sus.shtml.
[5] Ainda sobre o descaso com o sistema, no mesmo dia 07/12/2020, a Agência Estado distribuiu nas demais mídias outra matéria intitulada “Governo suspende exames de HIV, Aids e hepatites virais no SUS“, nas informações da reportagem salienta-se que o governo deixou vencer o contrato com empresa que realizava o serviço de exames para as especialidades. A matéria pode ser acessada no endereço https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2020/12/4893632-governo-suspende-exames-de-hiv-aids-e-hepatites-virais-no-sus.html.
[6] O Decreto N.º 10.620/2021, publicado no D.O.U. de 5 de fevereiro de 2021, trouxe alterações [inconstitucionais] no Regime Próprio de Previdência dos Servidores (RPPS) retirando a gestão das aposentadorias do funcionalismo da União e acumulando esta atribuição no INSS. A matéria intitulada “Decreto muda gestão de previdência do servidor público” pode ser acessada no endereço https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2021/02/4907258-decreto-muda-gestao-de-previdencia-do-servidor-publico-confira.html.
[7] O senador Márcio Bittar (MDB-AC) divulgou o parecer no dia 22/02/2021 com os principais pontos do texto base da PEC EMERGENCIAL, matéria do G1/Globonews intitulada “Texto do relator da PEC Emergencial acaba com piso para gastos em saúde e educação” pode ser acessada no endereço https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/02/22/texto-da-pec-emergencial-apresentado-pelo-relator-acaba-com-piso-para-gastos-em-saude-e-educacao.ghtml.
[8] O SUS recebe demanda de boa parte dos segurados do INSS. A gestão do sistema está diretamente relacionada ao Instituto de Seguridade. As falhas na operação dos serviços de saúde dos hospitais participantes do SUS (principalmente os federais) comprometem a eficiência na gestão social dos segurados no INSS. Como abordado no texto, a atual falta de ação do governo federal é um projeto. A CNN publicou um matéria intitulada “Quase metade dos leitos da rede federal no RJ está inativa, aponta TCU que pode ser lida em https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2021/03/02/quase-metade-dos-leitos-da-rede-federal-no-rj-esta-inativa-aponta-tcu.
Excelente texto, Fábio! Informativo e atual.
Obrigado, Paulo! O objetivo é mostrar que a partir de 1988 o Estado brasileiro organizou um sistema universal que é financiado pela riqueza produtiva brasileira visto que seu financiamento, principalmente, é um destaque de faturamento bruto de todas as empresas e da contribuição sobre o lucro líquido das pessoas jurídicas e dos bancos. É o retorno para os cidadãos, nacionais ou não, como dito é universal. Muitas vezes pensamos que não nos beneficiamos do sistema, mas, a pandemia veio e provou que as questões de saúde são do interesse coletivo. Infelizmente, o novo Ministro da Economia tem o objetivo de transformar esse sistema no modelo de “voucher”, contudo, isso será uma tragédia. Não podemos esquecer que todo volume econômico é gerado pela força de trabalho, também, com o modelo pensado na constituição, o custo da saúde sempre recairá no quinhão arrecadado no preço de tudo que consumimos, o empresariado é apenas o mandatário da arrecadação das contribuições que financiam o sistema. A retirada dela (contribuição) não significa necessariamente na redução dos preços de tudo, visto que a mesma teoria econômica de mercado explica que os preços se ajustam no tempo (oferta e demanda), desta forma, é muito mais provável que a retirada das contribuições previstas da CF/88, art. 195, inciso I, alíneas “b” e “c”, diretivas que deram partida às disposições da LC 70/1991 e Lei 7.689/88, também no tempo, se convolará no lucro do empresariado em prejuízo a um direito universal hoje garantido. (Detalhe, afirmo isso e eu sou empresário contribuinte) Abraços!