Tarefa difícil, para quem vive de música, é escolher uma favorita. Então começo por dizer que não, não é “a tal”, topo da lista, talvez nem top ten, mas é significativa. É uma música forte, do álbum de lançamento de uma banda que é sim uma das minhas favoritas. A música que escolhi para partilhar e debater aqui neste espaço é “Jeremy”, do álbum Ten (Pearl Jam), lançado em 1991.
É forte porque tem uma narrativa envolvida. A letra é inspirada no caso de um adolescente do Texas (E.U.A.) que levou uma arma para a escola e cometeu suicídio na sala de aula, diante da turma. A letra, bem construída, não conta o desfecho do caso de maneira explícita, mas vai aos poucos traçando o perfil psicológico do rapaz, fruto de uma sociedade adoecida, negligenciado pelos pais e menosprezado na escola. O refrão tem um toque inteligente: “Jeremy spoke in class today” (algo como “Jeremy falou na aula hoje”) – ao mesmo tempo em que faz alusão aos recados de advertência de mau comportamento enviados aos pais pelos professores ou pela direção da escola, também tem um sentido de “manifestou-se” ou “fez-se ouvir”.
A concepção musical colabora com a narrativa de forma a criar o clima para envolver o ouvinte. Começa com um riff lento numa região médio-grave contrastando com sons mais agudos que quase nos dizem “senta que lá vem a história”. Aos poucos vai ganhando mais peso e densidade, na medida certa e depois volta a uma textura mais simples, diminuindo o andamento para finalizar.
Não escolhi esta música por acaso. Acho importante o debate sobre o impacto político das manifestações culturais, especialmente em tempos de ascensão de ideologias de intolerância. O Pearl Jam é uma banda que, assim como outras, tem marcado suas posições políticas, defendendo a liberdade de expressão e fazendo críticas ao modo de vida excessivamente consumista e ganancioso da sociedade (com foco nos E.U.A). Por outro lado, tenho visto um movimento de bandas assumidamente neonazistas, que fazem reverberar os discursos de ódio. Felizmente, são minoria. Mas há que se ter em conta o poder mobilizador da arte e especialmente da música. Não são poucos os exemplos na história em que a apropriação cultural foi usada para amplificar ideias extremamente nocivas. É possível (e necessário) escolher bem o que se ouve.
***
Vini Couto é formado em Música pela UFRJ e Mestre em Criação Artística Contemporânea (Universidade de Aveiro). É especializado em violão erudito, mas curte o bom e velho Rock n Roll, desde sempre! É professor de música há mais de 15 anos. Trabalha também com teatro, fotografia e vídeo. Atualmente vive em Portugal e coordena o Ateliê Rabiscos Terapêuticos, onde ministra diversas oficinas criativas com Luci Vilanova.
vinicoutoguitar@gmail.com / www.rabiscosterapeuticos.com