Do dia 26 de março de 2021, em meio a uma nova onda da pandemia da Covid-19, e com uma contínua queda de popularidade, o governo de Jair Bolsonaro resolveu agir contra as críticas – que se avolumavam em veículos midiáticos e redes sociais – divulgando pelo Twitter uma carta-convite do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, ao chefe de Estado brasileiro, a qual o chamava para participar da Cúpula do Clima, que se inicia hoje, 22 de Abril. Com a atitude, deixava-se subentendido que, diferentemente do que pensavam os comentaristas políticos, o governo norte-americano não pareceria preocupado com os ataques de Bolsonaro ao então candidato Joe Biden, durante as eleições de 2020, ou mesmo com a estranha presença de seu filho, o deputado Eduardo Bolsonaro, na Casa Branca, um dia antes da invasão do Capitólio por apoiadores do ex-presidente Donald Trump.
O que não era incluído na divulgação realizada por Jair Bolsonaro no Twitter, era o fato de que o convite em questão havia sido feito a 61 líderes e chefes de Estado estrangeiros, entre os quais se encontravam o premiê da China, Xi Jinping, e o presidente da Rússia, Vladimir Putin, a quem Joe Biden chamou de “assassino” em uma entrevista realizada no início de março pela rede de TV norte-americana ABC. O que o governo brasileiro parecia querer retratar como uma espécie de demonstração de apreço singular, soava como um convite protocolar, incapaz de traduzir, a rigor, quais seriam as intenções ou posturas do governo dos EUA para com a política ambiental brasileira. A Cúpula de chefes de Estado, promovida pela administração de Biden, que completou recentemente 100 dias no cargo, visa realizar uma preparação para os trabalhos da conferência climática, planejada para ocorrer no mês de novembro deste ano, na Escócia.
Uma ideia mais clara das intenções dos EUA pareceram despontar em evento promovido pelo grupo Parlatório, e que reuniu importantes empresários, em São Paulo, no dia 11 de Abril. Entre os convidados de honra, encontravam-se o ex-ministro da Saúde, Luis Henrique Mandetta, da Saúde, e o ex-ministro da Justiça, Sérgio Moro, ambos desafetos de Bolsonaro. Juntamente com eles, esteve presente o embaixador dos EUA, Todd Chapman, que questionado por Moro sobre a postura dos EUA para com o governo brasileiro, resolveu – segundo apurou o jornal Folha de São Paulo – fornecer uma resposta cândida, dizendo: “As relações entre nossos países dependerão muito dessa postura ambiental do Brasil”. Segundo Chapmen, mesmo a entrada do Brasil na OCDE (objetivo buscado pelo governo de Bolsonaro desde o início de 2019), em larga medida, dependeria da política e postura ambiental do governo brasileiro.
A pressão aumenta
As tensões entre o Partido Democrata, de Joe Biden, e o governo de Jair Bolsonaro vêm crescendo desde que Biden usou o Brasil como exemplo de desastre em política ambiental, durante o primeiro debate à presidência dos EUA, realizado em Agosto de 2020. Desde então, o presidente do brasileiro não se furtou a tecer comentários críticos ao candidato e posterior vencedor das eleições. Poucos dias após a vitória de Biden ser anunciada, o presidente brasileiro chegou a subir o tom, afirmando que “quando a saliva acaba, resta a pólvora”, sugerindo a possibilidade de conflito armado entre os EUA e o Brasil, caso o primeiro tencionasse pressionar o país acerca de sua política de preservação do Meio Ambiente. No centro desta disputa, além do presidente brasileiro, encontravam-se dois de seus mais vocais ministros de Estado: o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e o ex-ministro das Relações Internacionais, Ernesto Araújo. Araújo, por exemplo, estava ao lado de Bolsonaro quando de sua não tão sutil ameaça aos Estados Unidos.
Após a posse de Biden, este ainda viria a chamar para seu gabinete nomes do Partido Democrata que se notabilizaram por fazer críticas ao governo Bolsonaro, como a ex-deputada Deb Haaland, a primeira nativa-americana a assumir uma ministério nos EUA (no caso, o Ministério do Interior), a qual criticou publicamente a política do governo brasileiro para com as populações indígenas, e o diretor sênior para o Hemisfério Ocidental no Conselho de Segurança Nacional norte-americano, Juan González. Porém, ainda que os sinais de futuros embates e pressões entre ambos os países estivessem no horizonte, a pandemia e a maior crise econômica desde o crash da bolsa de Nova Iorque em 1929, que deu início à Grande Depressão, fizeram com que Biden tomasse uma atitude comedida em termos de política externa, situação esta que foi sendo alterada conforme os números de mortos e infecções pela Covid-19 caíram, nos dois últimos meses. Primeiramente, Biden acusou formalmente o governo russo de perseguir e matar opositores e, em seguida, já no mês de março, seu Secretário de Estado (o equivalente norte-americano a um Ministro das Relações Exteriores), Anthony Blinken, pressionou o governo chinês por violações aos direitos humanos, durante uma cúpula entre os dois países, no Alasca.
E agora, no mês de abril, quando diversos chefes de Estado se preparavam para a Cúpula do Clima, sinais de forte pressão sobre o governo brasileiro começaram a despontar. Na última semana, González, anunciou uma visita de quatro dias à América do Sul. Nesta, os países a serem visitados pelo representante do governo norte-americano pareciam escolhidos a dedo: Colômbia, Argentina e Uruguai. Salta aos olhos a ausência tanto de países identificados com governos de esquerda, críticos aos EUA, como Venezuela e Bolívia, bem como aqueles afetados por fortes manifestações populares de oposição, como o Chile governado por Sebastián Piñera, e o Paraguai, governado por Mario Abdo Benítez. Porém, o que realmente saltou aos olhos foi a ausência do Brasil. Não apenas por sua tradicional proximidade para com os EUA (nosso segunda maior parceiro comercial, depois da China), mas porque, além do país ter buscado uma aproximação objetiva com Washington, desde a posse de Jair Bolsonaro, o governo brasileiro havia convidado González a visitar Brasília, durante seu tour pelo subcontinente. Ao que tudo indica, a recusa do diretor sênior ocorre concomitantemente ao aumento da pressão exercida por Washington sobre Brasília no que concerne à política ambiental do brasileira.
Nas últimas semanas – marcadas tanto por uma breve crise militar, dois dias antes da data que marcou o aniversário de 57 anos do golpe de 1964, quanto pela queda de Ernesto Araújo – Ricardo Salles esteve em negociações com John Kerry, nomeado pelo governo Biden como “czar do clima”. Nos EUA, é comum que presidentes nomeiem indivíduos de sua confiança para cargos de grande autoridade que, no entanto, não existem enquanto pastas ministeriais. Estes indivíduos costumam ser, chamados de “czares”, em referência ao título detido pelos imperadores russos entre os séculos XV e XX – e que quer dizer “César” na língua russa. Como “czar do clima”, John Kerry recebeu de Biden a função de atuar como um embaixador e negociador plenipotenciário dos EUA, detendo a missão de negociar com (e/ou exercer pressão sobre) diversos países do mundo, no que tange ao aquecimento global e às mudanças climáticas. Nesta semana, a Folha de S. Paulo revelou que, em uma das reuniões realizadas entre Salles e Kerry, o primeiro chegou a realizar uma apresentação de powerpoint na qual o Brasil era retratado como um cachorro de rua, olhando para um frango de padaria (decorada no slide com o símbolo do dólar). Aparentemente, esta foi uma tentativa do Ministro do Meio Ambiente transmitir a ideia de que, para o Brasil coibir violações ambientais, o governo dos EUA teria de, primeiramente, enviar verbas e assistência econômica à Brasília. Ainda segundo a Folha, a primeira reação dos presentes à videochamada foi de confusão: o “frango de padaria”, como o conhecemos – presença tradicional do cenário urbano brasileiro – não faz parte do ecossistema culinário ou visual norte-americano.
Somado a essas negociações institucionais, o presidente Jair Bolsonaro enviou uma carta protocolar a Joe Biden, no dia 10 de Abril, em que explicitava, numa linguagem rebuscada, o mesmo argumento que o powerpoint de Salles já havia abordado (e que aparentemente será repetida durante a Cúpula do Clima): o Brasil poderia se comprometer a assumir uma postura mais decisiva de combate ao desmatamento na Amazônia e a outras violações ambientais se, primeiramente, os EUA fornecessem assistência econômica ao Brasil. Pouco se poderia conjecturar acerca de qual efeito a postura do governo de Jair Bolsonaro viria a gerar – mesmo que, do ponto de vista lógico, suas consequências não se anunciassem como positivas. No entanto, na sexta-feira, 15 de Abril, as pretensões do governo Bolsonaro pareceram ser definitivamente frustradas. À tarde foi divulgado que senadores do Partido Democrata também haviam enviado uma carta ao presidente Biden, pedindo que o governo norte-americano não fornecesse financiamento ao governo brasileiro, em vistas daquilo que os senadores chamavam de “política de desmonte ambiental”. Com grande precisão técnica, a carta abordou questões como as queimadas na Amazônia e no Pantanal, no curso de 2020, e a redução orçamentária do IBAMA, ocorrida nos últimos dois anos e meio, além de mencionar as investigações conduzidas pela polícia Federal contra o ministro Salles, acusado de favorecer madeireiros ilegais. Mas o documento ia além, pedindo que o governo dos EUA vetasse a entrada do Brasil na OCDE e mesmo cortasse qualquer tipo de ajuda econômica e militar. A carta recebeu considerável atenção da mídia brasileira por contar com a assinatura do senador Bernie Sanders (candidato derrotado nas primárias do Partido Democrata em 2020 e grande nome da esquerda norte-americana). No entanto, igualmente relevante era o fato da carta conter as assinaturas de dois outros senadores: Robert Menendez, de Nova Jersey, que é presidente do Comitê de Relações Exteriores do Senado norte-americano (sendo a mais influente voz do legislativo do país sobre sua política externa) e Patrick Leahy, de Vermont, que preside o Comitê de Apropriações do Senado (o mais importante do corpo legislativo, e que lida com os dispêndios financeiros do Tesouro norte-americano). Vale ainda lembrar que o próprio Bernie Sanders, desde Janeiro deste ano, exerce a presidência do Comitê do Orçamento do Senado. Tratam-se assim, das maiores autoridades senatoriais do país, univocamente, pressionando o governo norte-americano a não colaborar com o governo brasileiro.
John Kerry: o negociador
Na noite do mesmo dia, 15 de Abril, John Kerry divulgou uma carta em resposta àquela enviada pelo presidente Jair Bolsonaro, exigindo “medidas imediatas” de proteção ao meio ambiente por parte do governo brasileiro, entre elas iniciar um diálogo com populações indígenas e a sociedade civil do país. Quem imaginava que Kerry – que tem como trejeitos característicos, uma personalidade calmo, além de um tom de voz lento e arrastado – seria leniente com o governo brasileiro, desconhece a reputação de negociador duro, criada durante décadas como senador do estado de Massachussetts, e posteriormente como secretário de Estado go governo de Barack Obama. Na ocasião, Kerry foi um dos negociadores do Acordo Climático de Paris e do Tratado Nuclear com o Irã. Além disso, aqueles que imaginassem Kerry como um diplomata de estilo não-confrontacional, demonstraria desconhecer a carreira deste antes de ingressar na vida política. Assim como o presidente brasileiro, Kerry também é um ex-militar, tendo chegado à patente de tenente da Marinha dos EUA. Kerry possui ainda extensa experiência de combate, tendo comandado um barco no delta do Rio Mekong, durante a Guerra do Vietnã, lutando em uma embarcação semelhante àquela do filme “Apocalypse Now”, de 1978. Por seu serviço militar, Kerry receberia a Estrela de Prata, a Estrela de Bronze e três Corações Púrpuras. O “czar do clima” do governo norte-americano ainda se notabilizaria como uma importante e aguerrida liderança do movimento de oposição à própria Guerra do Vietnã, após retornar aos EUA, quando foi o prota-voz da organização Vietnam Veterans against the War.
Ainda é difícil prever o que ocorrerá na Cúpula do Clima. Porém, três possibilidades podem ser ressaltadas: 1) o governo Brasileiro pode receber uma sumária negativa do governo norte-americano, que se recusará a desembolsar qualquer valor antes do governo demonstrar sinais de estar combatendo o desmatamento amazônico; 2) uma negativa sumária, somada à pressão ativa, que poderia ser realizada na forma de medidas econômicas ou políticas – impostas com o intuito de fazer pressão sobre o governo de Jair Bolsonaro; e 3) o governo brasileiro, de fato, conseguir obter recursos do governo norte-americano, com valores atrelados à preservação da floresta Amazônica e outros ecossistemas. O problema no que tange à terceira possibilidade, é que, caso ela se concretize, muito provavelmente, ela estará atrelada a exigências pesadas por parte dos EUA. negociadores como Kerry e o próprio Biden não aceitariam recusar a pressão feita pelo Senado norte-americano, pelo Partido Democrata, e pela própria sociedade civil do país, por menos do que uma série de ganhos efetivos, econômicos, políticos e ambientais, para o seu país. Resta aguardar o desenrolar da Cúpula e atentar para os próximos meses: em julho, o Parlamento Europeu decidirá se proibirá a importação de produtos brasileiro que tenham contribuído para o desmatamento amazônico; e em novembro, a Conferência Climática de Glasgow demonstrará a situação do Brasil, junto a seus parceiros globais, no que tange à questão climática.
■