Na história do carnaval, desenvolver enredos sobre a trajetória e sabedoria das populações afro-brasileiras não é nenhuma novidade. Afinal, as escolas de samba ao falar dessa temática, estão olhando para si mesmas e saudando suas comunidades. Pois é sabido que o samba e o carnaval têm na sua origem a cultura negra e marginalizada desse país. No entanto, atualmente, no Brasil verde e amarelo, nota-se um incômodo crescente com o carnaval e as festas populares, feitas pelo e para o povo.
Além disso, o aumento do número de evangélicos no Rio, que, em sua maioria, também demonstram descontentamento quando chega o mês de fevereiro, acaba potencializando a barreira “invisível” que existe para se cercear o carnaval. Barreira essa, que, este ano, tirou as máscaras e fez uso de razões sanitárias, só servindo para segregar a alegria e conseguindo, mais uma vez, frear o maior espetáculo da Terra.
Mas o povo do samba está acostumado com boicotes e de resistência ele entende. Não é de hoje que se tenta demonizar o carnaval, eu mesma já cansei de ouvir comentários do tipo “ah, mas as escolas só falam de macumba, todo ano a mesma coisa”. Quem tem esse pensamento e acha que gosta de carnaval não entendeu nada. E, geralmente, são os mesmos que dizem que carnaval e política não se misturam. Outra burrice difundida e comprada por quem acha que política só se faz no Congresso Nacional.
Pois bem, depois de um hiato de quase dois anos, as escolas estão esquentando os tamborins para atravessar a Marquês de Sapucaí para levar reflexão, alegria, pensamento crítico e emocionar os foliões. Esse ano, oito das doze escolas cariocas trazem, de alguma forma, enredos que têm como destaque a cultura afro-brasileira. Seja por meio das religiões de matriz africana ou lembrando a figura de Cartola, por exemplo. Há quem diga que carnaval é brincadeira, para mim é coisa séria.
Começo com a escola de samba Paraíso do Tuiuti, que traz o enredo “Ka ríba tí ye” – “Que nossos caminhos se abram”. – O Tuiuti canta histórias de luta, de sabedoria e de resistência negra”. A escola de São Cristovão vai desfilar pela Sapucaí pelas mãos e mente do carnavalesco Paulo Barros e promete emocionar o público com um dos sambas mais bonitos deste ano.
A Estação Primeira de Mangueira dessa vez vai olhar para seu próprio quintal e fazer uma ode à uma trinca poderosíssima da história da Verde e Rosa. A escola vai homenagear Cartola (Angenor), Jamelão (José Bispo Clementino dos Santos) e Mestre Delegado (Hélio Laurindo da Silva). Com o título “Angenor, José e Laurindo”, o carnavalesco, Leandro Vieira, escolheu exaltar três homens negros que fizeram história para além da Mangueira. Como diz num dos versos do samba enredo, “nesse solo sagrado/ o samba ecoou/ tem cantor, mestre-sala e compositor”. O sol vai colorir a saudade dos mangueirenses e saudar seus mestres.
A azul e branco de Madureira traz para esse carnaval o enredo “Igi Osè Baobá, que será desenvolvido pela dupla de carnavalescos Renato Lage e Márcia Lage. A Portela vai contar a história e retratar a simbologia dos baobás, árvores milenares originárias da África. A importância dos baobás será evidenciada, também, através da ancestralidade, religiosidade, identidade e memória do nosso povo. O legado e a cultura que os baobás deixam para o Brasil reforçam o elo entre nosso país e a África.
A Vila Isabel contará a história de um dos seus maiores ícones, o cantor e compositor Martinho da Vila. O título do enredo é “Canta, canta minha gente! A Vila é de Martinho”. Ele que é pai da Alegria, literal e metaforicamente. Sua caçula, de fato, chama-se Alegria. O samba nos diz “Eu vou junto da família/ do Pinduca à Alegria pra brindar/ modéstia à parte/ o Martinho é da Vila”. Com um samba cheio de referências da obra vasta do sambista, a escola busca seu quarto título, trazendo a força do seu negro rei.
Com o tema “Resistência”, a Acadêmicos do Salgueiro, vai retratar locais do Rio de Janeiro marcados como pontos importantes de resistência cultural preta, como Cais do Valongo, Pedra do Sal e tantos outros lugares que são berços da nossa história e cultura afro-brasileiras. A Vermelho e Branco da zona norte busca exaltar a potência e a ancestralidade que marcam o chão carioca. Aliás, a escola tem autoridade para falar do assunto, pois foi a primeira agremiação a desenvolver um enredo afro em 1959, iniciando, assim, a chamada Revolução Salgueirense. De lá pra cá, o Salgueiro coleciona enredos que têm como protagonista o negro e sua história.
“Batuque ao caçador” é o título do enredo da Mocidade Independente de Padre Miguel. A escola levará para a avenida uma homenagem a Oxóssi, o orixá caçador cultuado no Candomblé e, também, prestará um tributo à bateria da agremiação, considerada uma das melhores do ramo, e, por isso, leva o apelido de “não existe mais quente”. A Verde e Branco lembra a figura de Mestre André, o mestre de bateria que criou a “paradinha”, fazendo história na escola e mudando para sempre o jeito de comandar seus ritmistas. A Estrela Solitária de Padre Miguel, nos lembra que “todo ogã da Mocidade/ é cria de Mestre André”.
A Beija-Flor de Nilópolis traz o enredo “Empretecer o pensamento é ouvir a voz da Beija-Flor”. A escola pretende, assim, exaltar as glórias e a história da população negra e botar o dedo na ferida aberta que é o racismo no Brasil. Segundo a agremiação, a Beija-Flor vai cantar seu lugar de fala, afinal, a escola nilopolitana é feita de sua comunidade e carrega em sua bandeira personalidades negras fundamentais para sua história. Quando se fala em Beija-Flor, logo se pensa em Neguinho da Beija-Flor, no casal de mestre-sala e porta-bandeira Claudinho e Selminha Sorriso, na rainha de bateria Raissa de Oliveira, no genial carnavalesco Laíla, responsável por muitos títulos da escola – morto no ano passado vítima de covid-19 –, na Cinderela negra Pinah, e em tantas outras figuras que nos vem a memória quando pensamos em Beija-Flor.
Com um enredo inteiramente dedicado a Exu, a Acadêmicos do Grande Rio aposta na ousadia e coragem e traz um dos temas mais fundamentais dos últimos tempos. A figura de Exu sempre foi rodeada de ignorância, desrespeito, medo e demonização. A escola, então, decide levar para a avenida essa entidade poderosa e temida por quem a desconhece. Ver a Sapucaí saudar Exu será uma das coisas mais revolucionárias e importantes que a escola nos ofertará. A Grande Rio, que não costuma desenvolver enredos afro, subiu o sarrafo e foi assertiva na sua escolha, saudando quem vem primeiro. A escola traz pelo segundo ano consecutivo um enredo relacionado à religião de matriz africana. Em 2020 havia prestado uma homenagem a Joãozinho da Goméia, o pai de santo mítico de Caxias, conseguindo o segundo lugar. Este ano bate o tambor pra Exu lhe trazer seu primeiro título do carnaval.
As escolas de samba ao trazerem enredos afro para avenida estão contando a própria história e mantendo viva a cultura do nosso país. O carnaval nos presenteia com conhecimento, reflexão e, o mais importante, desconstrói premissas antiquadas e liberta o folião rumo à magia e ao mistério de que é feita a festa. Devemos olhar para a negritude posta ao centro dispostos a aprender e nos entender como nação. Como diz o verso do samba de Luiz Carlos da Vila, “o samba corre/ nas veias dessa pátria mãe gentil/ é preciso a atitude/ de assumir a negritude/ pra ser muito mais Brasil”.